domingo, 25 de março de 2012

AS PÁGINAS PRIMEIRAS
Ficção literária de Geraldo J. Costa Jr.


Para Vivi, minha filha, com amor.


1.

 Não esperem por grandes acontecimentos.
Amigo de Tômaz, primo de Axel, este Foster F. de Faria e Sá, de que vos falo não é dado a arroubos filosóficos; seu vocabulário é minúsculo e sua cultura insignificante. Mas por uma dessas aberrações da natureza, um instante de descuido da divindade, e eis que Foster, o inconseqüente romântico, provido da mais fina ironia, enveredou pelo insólito e insano caminho da literatura. Aos 14 anos, decidiu travar o invencível combate entre sua mediocridade e as regras do jogo. Há de perder não resta dúvida. Ótimo, ótimo! – ele diria se, naquela manhã, enquanto se preparava para ir à escola, não estivesse atento a mais uma discussão de seus pais.
Espere. Esta não é a melhor maneira de se começar uma estória. Uma boa estória começa com um fato impactante, que desperte e prenda o interesse do leitor. Portanto, senhores, morte!
Morte?
Claro que sim!
Morte. Como não havia pensado? Princípio básico do drama: Inicie com uma tragédia. Algo catastrófico, tenebroso, horripilante, repulsivo, hilariante de tão deprimente, tosco, ridículo. Tenso, cavernoso, tétrico, asqueroso.
 Morte. Com todas as letras. GARRAFAIS. Em estilo gótico e luz néon.
 Não. Não, esqueça isso, Foster, seu cabeça dura. Não ceda aos clichês, não ceda ao Coelho, busque o Guimarães, o Alencar, o Euclides que existe dentro de você. Seja difícil. Fale difícil. Faça aquele olhar casual superior, desça um pouco os óculos sobre o rosto, e sim, claro, claro, certamente, todos encontrarão em você um excepcional escritor.
Ah, não esqueça que não deve pentear os cabelos. E deixe a barba por fazer uns dois dias, mais ou menos. Isto é, quando você tiver barba.
Por enquanto leia. Bastante. Autores alquimistas e, principalmente, de livros de auto-ajuda. Pra que você aprenda logo como não escrever.
Isto não vai lhe fazer ganhar dinheiro, Foster. Mas haverá de torná-lo um bom escritor.
Ao menos, há de ajudá-lo a evitar as idiotices encontradas com facilidade no mundo literário. E economizar resmas e resmas de papéis e lápis e, bem... Lamento dizê-lo, mas, fitas para máquinas de escrever, porque, afinal, você não tem e provavelmente não terá nesta vida, pobretão que é, um computador.
Lembre-se. Não prometi torná-lo um escritor famoso, e muito menos milionário. Mas um bom escritor. São coisas diferentes. Inconciliáveis no mundo em que vivemos.
Eu bem disse pra você ter vindo antes, Foster. Mas você ficou lá em cima, na... Como se chama aquilo? Sim! Espiritualidade. Trabalhando, segundo soube, como jardineiro; e estudando de noite.
E com isso se passaram duas décadas. Vinte anos. Vinte anos, Foster!
Muito tempo desperdiçado.
Todos para cá vieram e você ficou lá em cima, cuidando de roseiras, das orquídeas, flores e samambaias. Belo e formoso, e o pau comendo aqui embaixo.
Seu miolo mole! Não é à toa que você se sente deslocado neste mundo. Como se seu lugar não fosse este. Seu tempo não fosse este. Você olha em redor e se pergunta: o que essas pessoas fazem na minha vida? Que importância elas tem?
Foster amassou a folha em que escrevia, e a atirou debaixo da cama, onde muitas outras já se acumulavam.
Os pais continuavam brigando.
Bem, aqui me despeço, prezado leitor. Ao menos por enquanto. Deixarei que Foster conte a sua estória. Há detalhes que desconheço. E coisas que ele, certa feita, me confidenciou deveras importante. Foi o argumento de que se utilizou para me convencer a lhe dar ouvidos. Sujeitinho!


***
Por que me olham desse jeito? Quem são vocês? Se lhes interessa, meu nome é Foster. Sou mesmo bonito; convencido de minha inteligência, e orgulhoso de minha beleza. Metido, sim. Arrogante, por que não? E, às vezes, pervertido. Tenho 14 anos. Estou na sétima série, e vou escrever a melhor redação do mundo. Estejam certos disso.
Bem, vamos aos fatos. Eu tinha 11 anos, quando meu pai me disse que minha mãe iria morrer. Ele disse assim, de chofre, desprovido de reservas, sem maiores cerimônias. Eu me lembro que estávamos, eu e meus amigos, jogando futebol no quintal lá de casa, que um dia fora alguma coisa como o jardim superestimado de minha mãe.
Prometo a mim, a Deus, e ao mundo, que, quando eu tiver bastante dinheiro, vou comprar uma casa que tenha um jardim, e vou batizá-lo com o nome de “Dona Esmeralda”.
Por falar em nomes, estava eu fuçando dia desses, a biblioteca da escola, quando me deparei com um livro que explica o significado dos nomes. O meu significa...
Não significa nada, porque simplesmente não consta da lista.
Ora, nunca gostei do meu nome. E o fato de continuar não sabendo o  que significa, não me faz mudar de opinião a respeito: É horrível!
Foster é nome de doutor. E, certa vez, soube que minha mãe sonhava que eu me tornasse advogado.
Pobrezinha! Mães sempre têm idéias geniais que os filhos teimam desprezar.
Ela morreu num final de tarde. Seis e meia... O dia se apagou junto com minha mãe. Mas no quarto do hospital em que ela se encontrava, havia uma luz como que vindo do céu, que tornava mamãe novamente jovem, e bonita.
Essa lembrança sempre me ocorre quando me vejo em situação de extrema necessidade. Como, por exemplo, esperar que meu amigo Héctor, troque o pneu do seu carro.
Não suportando mais a demora, esbravejei:
“Héctor! Vê se arruma logo esse maldito pneu!”.
“Não tô conseguindo fixar o parafuso no buraco da roda” – disse ele, irritado.
“Justo aqui, no meio do nada, essa merda tinha que furar!”.
“Ora, vê se não enche tá bom? Você podia ao menos descer do carro, e já diminuiria o peso”.
“Pois não, Sargento. Seu pedido é uma ordem”.
“Muito bem. Agora, é só apertar o parafuso” – havia satisfação e alívio nas palavras de Héctor.
“Ótimo, já não era sem tempo”.
“A chave?” – disse ele, estendendo a mão espalmada.
“O quê?”
“Vamos, me dê! A chave, Foster! Anda!”.
“Sim, mas onde está a chave?”.
“Ora, meu Deus, onde está a chave? E eu lá sei onde é que está a maldita chave?”.
“Deveria. O carro é seu – respondi – Não confere os equipamentos antes de pegar estrada?”.
Por que disse isso?
Ficamos nessa discussão idiota, por um bom tempo, até que Héctor conseguisse trocar o pneu furado do seu velho Fiat 147.
“Minha vontade, Foster, era deixá-lo a pé, no meio desta estrada deserta!” – disse ele, em tom ameaçador, ao entrar no carro.
“Pois não duvido. Só este seu olhar já me assusta”.
* * *
Éramos como irmãos. Não no sentido bonito da palavra. Ou seja, capazes de dar a vida um pelo outro. Nada disso. Mas o fato é que a convivência e a cumplicidade mútua haviam tornado estreita a nossa relação de amizade.
Padecíamos, por exemplo, do mesmo mal: não tínhamos sorte com as mulheres.
Da turma da classe, acho que fomos os últimos a conhecê-las. Ora, grande coisa isso!
Naquela noite, voltávamos de uma festa comemorativa ao aniversário de Santa Gertrudes, cidade vizinha à nossa. E bebemos.  E já naquele tempo, bebemos de tudo. E bastante. Mas, mulher que é bom, nada. Tiago e Ricardo, que nos acompanhavam, voltaram no carro de Anselmo, de modo que a bagunça verificada na ida, não se repetira na volta.
Ao retornarmos, eu estava morrendo de sono. Mas tive de aturar Héctor, por mais de uma hora, no portão de casa, falando sobre seus eternos planos de conquista amorosa. Acabamos por nos sentarmos na calçada, encostados no muro chapiscado que naquela semana, havia recebido uma demão de tinta amarela.
Enquanto Héctor dissertava sobre amores não correspondidos, conquistas efêmeras, frustrações sexuais, eu, de olhos fechados, já quase dormindo, lembrava-me dele, então um pivete de 11 anos, no recreio da escola onde estudávamos, desde os 6, comendo seu lanche de pão com mortadela, devidamente acompanhado de uma garrafinha de guaraná, que ele comprava na cantina, e era o primeiro a fazê-lo, todas as manhãs.
“Então, o que você acha de tudo isso?” – ele indagou.
“Que seu lanche devia ser horroroso. E sua mochila, eu agora, tenho certeza, era mesmo ridícula”.
Olhos arregalados, ele enquadrou-me, alvo de sua ira.
“Cê não presta mesmo atenção no que eu falo, não é?”.
“Héctor, me desculpe, mas sabe que horas são?”.
“Agora mais essa. São quatro e meia da manhã. E daí?”
“Estou com sono”.
“Não. Está doente. Deve estar sim!”.
“Que eu saiba não”.
“Seu olhar revela uma irresistível tendência ao suicídio”
Eu me levantei.
“Não seria mesmo má idéia”.
“Sempre fugindo, não?” – ele provocou, levantando-se também.
“O quê?”
“Essa sua mania. De fugir dos problemas”.
“Escute Héctor...” – e o apontei com o dedo.
“Lá  vem...”.
“Agora, você vai me escutar”.
“Não precisa – ele deu a volta e abriu a porta do carro – Já sei o que vai dizer. Que mora numa casa que não é sua. Que trabalha onde não gosta. E odeia as pessoas que vivem em seu redor. Inclusive – e apontando-se – Alguns amigos ilustres”.
Balancei a cabeça, desolado, me dando por vencido.
“Você é detestável, Héctor”.
“Vá dormir Foster. Amanhã, eu te ligo. Depois do meio dia”.
Na verdade, eu não dormi. Não consegui pregar os olhos àquela noite. Bastava uma contrariedade pra eu perder o sono.
Fiquei na sala, vendo televisão. Comendo. E bebendo. A vida que pedi a Deus, quando tinha 14 anos.
Assisti a Blade Runner, Era uma vez no Oeste e O Corcunda de Notre Dame. Assim, na seqüência. Bons filmes me davam prazer. Algo como estar num cassino e ganhar todas.
Isso me fez novamente voltar no tempo, e me lembrar de quando eu tinha 14 anos.
Naquela noite, lembro-me bem, eu havia passado na casa de Héctor, mais cedo do que de costume. Era Quarta-Feira, dia em que íamos à sessão de cinema da escola de idiomas onde Héctor estudava. Explica-se: O dono da escola, um sujeito alto, barbudo, óculos fundo de garrafa, e calçando, talvez 44, dono da franquia, fanático por cinema, como nós, oferecia gratuitamente aos seus distintos alunos, uma vez por semana, uma sessão de filmes, em VHS, com lançamentos da época, e clássicos inesquecíveis, que ele, passava no seu então, moderno, hoje, rudimentar, vídeo cassete.
A bordo de nossas possantes bicicletas, Héctor e eu, seguíamos pelas ruas tranqüilas de nossa cidade, naquele princípio de noite, conversando sobre meninas e futebol, e futebol e meninas.
“Qual é o filme de hoje?” – indaguei.
“Ora, que interessa, é de graça mesmo” – Héctor respondeu.
“Não me diga que é de ficção científica, de novo?”
“Pra ser sincero, me parece que sim. Mas o professor Guilherme me disse que é um filme muito bom”.
“O da semana passada também. Pelo menos era o que haviam prometido”.
“Certas ocasiões, Foster, você se torna um sujeitinho desagradável. Além de convidado, se acha no direito de reclamar. Não sei como ainda não reclamou do sofá e dos pasteizinhos que nos são servidos”.
“Não reclamei pra você”.
Ele parou de repente, apoiou os pés no chão, e ficou a me olhar: os dedos, tamborilando no guidão da bicicleta.
“Eu não acredito que você fez isso!”.
“E daí?”.
“Não é você quem estuda naquela maldita escola, Foster”.
“Continue pagando as mensalidades em dia, e eles sempre sorrirão pra você”. – respondi.
Chegamos finalmente. Guardamos nossas bicicletas nos fundos da casa onde funcionava a escola de idiomas, e nos dirigimos para a sala de recepção, que, no horário fora do expediente, se transformava na sala de cinema.
O professor Guilherme, terminava uma breve introdução sobre o filme. Acomodamos-nos no chão. Porque os sofás já estavam ocupados.
Foi a primeira vez que assisti a Blade Runner, convencido de que o mundo e as pessoas seriam num futuro próximo, exatamente daquele modo. Nada mal.
Saímos de lá, e ainda fomos jogar fliperama, e depois, tomar sorvete, porque o verão, aquele ano, viera mesmo insuportável.
Tínhamos então 14 anos. E penso que não imaginávamos que um dia teríamos 22. Éramos felizes. Mas não sabíamos que éramos. Para nós, felicidade era ter uma namorada, um carro, dinheiro no bolso. Mas nos contentávamos em ter um emprego e ganhar salário mínimo. Mas, onde o emprego? Por isso, nos restava apenas a mesada de todos os meses, que uma revista, o cinema e o  lanche aos finais de semana, logo consumia.


ESTA NOVELA CONTINUA. SE DESEJA CONHECÊ-LA NA ÍNTEGRA OU TENHA INTERESSE EM PUBLICÁ-LA  FAÇA CONTATO COM O AUTOR. 
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.